Aclimatadas em Londres, foram plantadas na Ásia. O plantio deu tão certo que a Amazônia, fornecedora monopolista de borracha na transição do século 19 para o 20, foi para o rabo da fila dos produtores e nunca mais recuperou a antiga posição. O Brasil deixou de ser auto-suficiente e a Amazônia nem é produtora significativa no mercado interno. Tudo por culpa de um inglês astuto e imoral.
A indignação de hoje é a mesma de quase um século atrás, quando as colônias asiáticas das potências européias passaram a inundar o mundo com borracha incomparavelmente mais barata e abundante.
Na verdade, não houve contrabando. Wickham despachou a carga pelos meios legais e até patrocinou um convescote antes do embarque, em Belém, com a presença de autoridades e pessoas gradas da sociedade local. Há provas suficientes e convincentes do fato. Mas se a Inglaterra, a maior potência da época, precisasse roubar as sementes, certamente não se inibiria.
A quantidade e os preços da borracha amazônica eram incompatíveis com a escala de desenvolvimento que a indústria estava em condições de seguir. O que a empacava era a crise de oferta e os valores abusivos cobrados em função do monopólio. Os brasileiros até desdenharam a empreitada de Wickham. A árvore da borracha não era nativa da região? Como podia dar melhor em outro lugar? Impossível.
Não era, provou a história, reconstituída com lucidez pelo americano Warren Dean no já clássico “A Luta pela Borracha no Brasil”. Se a natureza foi pródiga (mas também caprichosa) na tessitura do ambiente físico na Amazônia, foi fatal em relação à Hevea Brasiliensis. A árvore atinge um porte atlético, com até 50 metros de altura, e uma fecundidade excepcional apenas nas condições naturais, dispersa no meio de muitas outras espécies.
A biodiversidade, quintessência do valor natural amazônico, hoje tão exaltada, mostrou-se fatal sempre que se tentou adensar seringueira na mata. E o adensamento era indispensável para aumentar a produção e a produtividade, sem o que ficou impossível concorrer com os plantios asiáticos.
Adensada, a seringueira é atacada pelos fungos, que a tornam estéril. Henry Ford amargou essa constatação ao formar seus plantios no vale do rio Tapajós, no Pará. Depois de 17 anos de experimentos, ao custo de muitos milhões de dólares, desistiu e foi buscar seu suprimento na Ásia. A ecologia se revelou implacável com as tentativas de enriquecimento de seringueira na Amazônia.
Qualquer pessoa minimamente informada não tem mais dúvidas a respeito. No entanto, a maioria prefere continuar a acreditar que o colapso da borracha, antes da crise do café, resultou de uma conspiração do imperialismo. As iniciativas de contar a história real também nada mais seriam do que a persistência do mesmo interesse estrangeiro, através dos seus porta-vozes mercenários.
Essa posição tem impedido a sociedade, como em outros episódios da história da Amazônia, de enfrentar e superar os problemas que cotidianamente se impõem à região. O prejuízo dessa mistificação é enorme porque a Amazônia é a mais internacionalizada das regiões brasileiras e a mais tardia na integração à nacionalidade. Sua incorporação física tem apenas meio século e ainda não está completa (de certo modo, felizmente).
O erro fatal cometido em relação à borracha pode estar se repetindo no caso do açaí. As reações dos leitores à coluna anterior, com mensagens perspicazes e provocativas, além de enternecedoras e gentis, mostram que a sociedade está a reboque dos fatos consumados. O governo vem ainda mais atrás, se é que está acompanhando a dinâmica histórica.
O descompasso entre os fatos criados pelos agentes dessa história, atuando sem coordenação e sem apoio ou regulação, pode provocar efeito – não semelhante, mas comparável – ao crack da borracha, que se seguiu, em tão curto intervalo, ao seu boom.
São numerosos e complexos os problemas que precisam de solução para evitar as previsões feitas por muitos leitores: que o açaí deixará de ser produto genuinamente amazônico (e, sobretudo, paraense) e que os maiores ganhos serão obtidos por atravessadores e comercializadores, fora dos limites regionais (e até nacionais).
É preciso, primeiro, ter uma idéia da grandeza da economia do açaí. Para o produtor, ele representa algo como R$ 2 bilhões. Colocado à mesa do consumidor, esse valor se multiplica, no mínimo, três vezes. Pode chegar a R$ 6 bilhões. Não há fruta que renda tanto.
Frutas típicas não faltam na Amazônia. Uma sorveteria se tornou célebre em Belém porque oferecia 103 sabores de sorvetes, em sua maioria de frutas nativas e únicas. É espantoso que a estrutura governamental não contemple um instituto do açaí ou de frutas tropicais. É uma fonte de receita que já é muito significativa agora e pode se tornar grandiosa nos próximos anos.
Claro que a política oficial não pode ser montada num dia para se completar no outro. O maior desafio na Amazônia é criar conhecimento científico. A dificuldade está em dispor de verba para sustentar a frente do saber tanto quanto em estabelecer uma postura adequada sobre a complexidade regional. Um conhecimento superficial é passaporte para uma atividade efêmera, conforme mostram numerosos casos do passado.
Mal circularam informações sobre o poder cicatrizante do óleo da copaíba e já eram comercializadas cápsulas a granel. O efeito tóxico do óleo, nocivo para o aparelho digestivo, se contrapôs ao seu poder curativo. Não houve pesquisa suficiente sobre os princípios ativos da essência para a formulação de um medicamento completo.
A investigação científica sobre as frutas amazônicas, e em particular o açaí, é incapaz de responder sequer às indagações feitas pelos leitores desta coluna. Menos satisfatórios ainda são os dados sócio-econômicos, necessários para montar uma base econômica, industrial e comercial para o produto.
Personagens que se encontram nas várias etapas do processamento do açaí acumulam conhecimentos específicos que lhes dão expertise e maestria no que fazem. Por isso há pessoas ganhando muito dinheiro com a exploração da palmeira – e não só para extrair o suco: há o apreciado palmito, o uso da palha, o artesanato criativo e bonito.
Do açaí, nada se joga fora. Mas o retorno é desigual e injusto: só favorece a alguns. E pode prejudicar a maioria, que aprecia tomar o vinho puro e grosso, a sua melhor forma e seu paladar superior.
Como conciliar o consumo interno com a crescente exportação? Como difundir o “verdadeiro paladar do açaí”, conforme observou um leitor, em meio a manipulações tão diversas – e legítimas, porque atendem a demandas de consumidores distintos?
Se quem pode decidir, ao invés de fazer a parte que lhe cabe, espera por decisões vindas da regulamentação automática do mercado (esta, uma ficção), dificilmente o açaí terá desfecho melhor do que o da borracha. Não por fantasias utilitárias, mas por efeito da ação – às vezes cruel – do mercado.
A propagação dos casos de doença de chagas associados – como consequência automática – ao açaí tem função invertida à do contrabando da borracha. Ao longo de séculos em que os paraenses tomaram diariamente seu vinho de açaí, a doença não existia. Hoje existe e é real. Não pelo açaí em si, mas pelo crescimento do consumo sem o acompanhamento da higiene. A pasteurização, que seria a resposta automática, esbarra no dano que causa ao melhor paladar da fruta e na cultura local.
O problema existe, a causa é clara e a solução está ao alcance. Só falta a vontade de fazer melhor. Este é o produto mais em falta na Amazônia – e no Brasil.