segunda-feira, 7 de junho de 2010

De qual abolição estamos falando? - por Rosália Diogo

Rosália Diogo

Este ano completam-se 122 anos que foi abolida formalmente a escravidão no Brasil. O grande desafio que está posto é de levantar-se os dados sobre a real situação que possa legitimar a condição libertária da população afrobrasileira nos dias atuais.

Ao buscar as respostas, constatamos que a realidade não mostra-se confortável. Entre a posição de alguns cidadãos solidários e anti-racistas, e o posicionamento ideológico de manutenção do status quo da elite por parte de outros sujeitos, esse segmento populacional permanece fortemente marcado pela condição de desigualdade. Nesse embate de idéias, assistimos o primeiro grupo posicionando-se veementemente por exemplo, contrário à política de cotas para afrobrasileiros na universidade (Política de Ação Afirmativa), pela compreensão de que a Constituição Federal garante o direito de acesso para todos, cabendo que estudantes demonstrem mérito suficiente para tal. Já o segundo grupo, em uma ação deliberada, insiste em manter o processo de exclusão ao acesso universitário para negros e negras ao negar essa política. Esse grupo sabe que as políticas universalistas não resolveram e não resolverão esse dilema.

Ao fazer uma retrospectiva não muito longa, no que refere-se às lutas por relações igualitárias entre brancos e negros, verificamos os esforços do Movimento Social Negro, associações, pesquisadores e cidadãos civis. O esforço foi, e tem sido de tal ordem, que ainda que aquém de alcançarmos o ideário, avanços podem ser observados.

Iniciamos por relatar a Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo e pela cidadania e a vida que foi organizada com êxito e realizada em novembro de 1995, em Brasília. A Marcha foi um marco em homenagem aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, o líder do maior, mais duradouro e mais famoso símbolo da luta dos negros no Brasil contra o regime escravocrata: a República/Quilombo dos Palmares, que resistiu por um século na Serra da Barriga, no estado de Alagoas. Participaram desta marcha, ocorrida no dia 20 de novembro, uma segunda-feira, 30 mil ativistas, em sua maioria negros, com o desafio de associar as referências históricas às lutas do presente. Na ocasião, foi entregue um documento ao presidente da República, com as principais reivindicações do Movimento Social Negro, denunciando o racismo, defendendo a inclusão dos negros na sociedade brasileira e apresentando propostas concretas de políticas públicas.

O atual governo vem investindo em Políticas de Ações Afirmativas/Políticas de Reparação, que no dizer da professora Petronilha Beatriz Silva, ex-conselheira do Conselho Nacional de Educação são: conjuntos de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientandas para oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória.

As ações afirmativas são uma realidade nos Estados Unidos (onde alcançaram maior visibilidade), na Índia, Malásia, Ex-União Soviética, Nigéria, Alemanha, Colômbia, Canadá, Israel e África do Sul. Não são somente os negros os contemplados, mas os grupos discriminados. O principal objetivo das ações afirmativas para as pessoas é combater o racismo e seus efeitos negativos de ordem econômica, psíquica, social e cultural.

A Lei 10639/2003, que estabelece o ensino da História da África e da Cultura afrobrasileira nos sistemas de ensino, foi uma das primeiras leis assinadas pelo presidente Lula. Isto significa o reconhecimento da importância da questão do combate ao preconceito, ao racismo e à discriminação na agenda brasileira de redução das desigualdades. A lei reconhece a escola como lugar da formação de cidadãos e afirmam a relevância de a escola promover a necessária valorização das matrizes culturais que fizeram do Brasil o país rico, múltiplo e plural que somos. No mesmo ano (2003), o governo Lula criou a Secretaria Especial de Política de Promoção de Igualdade Racial – SEPPIR, trazendo possibilidades de mudanças concretas na busca de políticas que garantissem a reversão das desigualdades raciais no Brasil.

Em março de 2004 foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Esse parecer tem como propósito, regulamentar a alteração trazida à Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei 10639.

São pesquisas que constatam que a população negra é o segmento mais pobre da sociedade, a menos escolarizada e a que ocupa postos inferiores no mercado de trabalho; o que induz as mencionadas políticas governamentais. O livro“ A construção de uma Política de Promoção da Igualdade Racial: uma análise dos últimos 20 anos” , produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada traz-nos dados elucidativos acerca das desigualdades entre negros e brancos no Brasil. Os dados esclarecem que em 2005, para crianças na faixa etária relativa ao ensino fundamental, a taxa de matrícula entre jovens negros e negras de 11 a 14 anos era de 68%, quando se supõe deveria ser universal.Os outros 32% desistiram ou encontram-se ainda no primeiro ciclo do ensino fundamental enfrentando a repetência e com poucas perspectivas de atingir um nível de escolaridade que os prepare para o ingresso nesse século. Outro dado significativo é o que refere-se ao mundo do trabalho: em 1995 um trabalhador negro auferiu, em média somente 53,3% do que recebeu um trabalhador branco. Os dados atestam-nos ainda que negros com o mesmo nível educacional que brancos recebem rendimentos inferiores, em todas as faixas de anos de estudo.

De acordo com a última Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – PNAD/IBGE, 49,4% da população se autodeclarou da cor ou raça branca, 7,4 preta, 42,3% parda e 0,85 de outra cor ou raça. Para o IBGE a população negra é formada pelos que se reconhecem pretos e pardos.

O risco de um jovem negro ser vítima de homicídio no país é 130% maior que o de um jovem branco, segundo o Mapa da Violência – Anatomia dos Homicídios no Brasil, estudo realizado entre 1997 a 2007, com base nos dados do Subsistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde. Os estudos concluem que não é a pobreza absoluta, mas as grandes diferenças de renda que forçam para cima os índices de homicídio no Brasil.

Dessa forma, em uma sociedade que embora não assuma o racismo em relação à população afrobrasileira, a situação de desvantagem social/educacional para esse segmento não permite que ela comemore o dia 13 de Maio. A referência tem sido, e será, por um tempo ainda longevo, considerando o fosso das desigualdades, denunciar a “falsa abolição”, que retira negros e negras das senzalas e os confina em espaços destinados à cidadãos designados como escória. Não é possível comemorar as suas não permanência na escola e o pouco acesso à universidade. Não pode ser celebrativo que jovens negros que não receberam a herança de seus ancestrais não possam construir o seu capital cultural por terem a vida ceifada em função do racismo.

A grande celebração deverá ser voltada para o mês de novembro. Mês em que foi ceifada a vida de Zumbi dos Palmares, ícone da resistência negra em relação à opressão e ao processo de subalternização e desumanização dos descendentes de africanos no contexto da escravidão no Brasil e que reverbera nos dias atuais.

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