terça-feira, 18 de maio de 2010

Abolição inacabada

Três especialistas sobre escravidão e abolição falam sobre o 13 de Maio e de como esta data ainda carece de análise e compreensão da sociedade brasileira

por Amilton Pinheiro fotos Divulgação
Negros na cidade de Salvador, no final do século XIX

A praça estava uma agitação só, e o menino Afonso Henrique, então com sete anos (ele, que nascera em 13 de maio de 1881, comemorava aniversário naquele dia - 13 de maio de 1888), observava tudo aquilo num misto de medo e deslumbramento, apertando ainda mais a mão do seu pai, João. A cena, carregada de simbolismo, seria escrita anos mais tarde pelo escritor Lima Barreto, em seus diários, lembrando do que foi para ele o dia em que a população comemorou, no centro do Rio de Janeiro, a libertação dos escravos por meio da Lei Áurea, e que extinguiu a escravidão no Brasil. Mas não só o episódio ficaria nas memórias de infância do escritor, como também o fato de que aquela a Lei pouco tinha feito para os negros e mestiços na ocasião, idos de 1910. Poder-se-ia argumentar que naquele momento ainda era muito cedo para que a tal lei pudesse trazer alguma mudança significativa para os ex-escravos e seus descendentes. "Mas uma lei, por mais desejada que ela seja, não tem a força de jogar por terra o passado histórico", explica Wlamyra R.de Albuquerque, professora de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA), autora de O Jogo da Dissimulação, abolição e cidadania negra no Brasil (Companhia das Letras). E o que foi esse nosso passado histórico de escravidão que moldou, segundo a autora, as relações de subordinação sócio-racial brasileira e que perdura até hoje em nossa sociedade; passados 122 anos da Abolição da Escravidão? "Como considerar que todos eram cidadãos numa sociedade tão assentada de relações raciais assimétricas?", indaga Wlamyra.


Sessão do Senado em que se aprovou a Lei Áurea, a 12 de maio de 1888

Raízes do (Brasil) problema racial

Para se compreender o problema da inserção do negro na sociedade e da questão racial brasileira com o fim da escravidão, segundo qualquer historiador sério que se preze, é necessário entender como se deu o processo que culminou com a abolição. "A abolição em 1888 foi o desfecho de um longo processo de desmantelamento da escravidão. Desde pelo menos 1850, quando o tráfico atlântico de escravos foi proibido, a questão servil, como se dizia na época, preenchia a pauta política. Até a escravidão ser finalmente extinta no Brasil, em 1888, muitos escravos já tinham conseguido - por seus próprios meios e esforços - suas cartas de alforria. Isso significa que bem antes de 1888, boa parte da população (negra) brasileira já era formada por libertos. Uma gente que trabalhava, se divertia, estabelecia e resolvia seus conflitos, construía vínculos familiares e religiosos a partir do longo aprendizado no cativeiro, mas também vislumbrando as mudanças decorrentes da abolição", explica Wlamyra.


O que nos espanta é que a história, pós-abolição, quase nada falou a respeito da luta dos escravos libertos e livres no processo que deflagrou no 13 de Maio. "Desde o final da década de 80, especialmente na esteira das comemorações dos 100 anos da abolição, a historiografia brasileira vem reconsiderando os significados e implicações da Lei de 13 de Maio, que aboliu em definitivo a escravidão no Brasil. Depois de mais de cem anos daquele evento muita coisa se perdeu ou foi esquecida e a abolição terminou se transformando numa concessão da Princesa Isabel. Os últimos estudos promoveram uma revisão profunda, que permitiu recolocar a abolição como um momento crucial da história do Brasil e marco fundamental para se pensar as tensões sociais e raciais que se seguiram ao fim do cativeiro. Uma das consequências dessa revisão foi avaliar com mais profundidade a participação de escravos, libertos e livres no processo que culminou na abolição. A escravidão chegou ao fim não apenas porque os escravos fugiram, mas também porque suas ações tiveram efeito político capaz de influenciar debates dos parlamentares e atitudes das próprias camadas senhoriais".
Três livros dos pesquisadores entrevistados que retratam o flagelo da escravidão e de como a abolição da escravatura moldou a sociedade brasileira no tocante a inserção do negro
Princesa Isabel, conselheiro Rodrigo Augusto da Silva (que enviou o projeto de lei à Câmara dos Deputados), conselheiro Antônio da Silva Prado e demais membros do gabinete de 10 de março, 1888
Os olhares também se voltaram para a participação dos livres e libertos, negros e mestiços, no movimento popular que derrotou um sistema de mais de trezentos anos. O movimento antiescravista estava articulado a uma luta por cidadania, que terminou impulsionando a abolição", esclarece Walter Fraga Filho, um dos mais importantes especialistas sobre a vida dos ex-escravos, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), e autor do livro Encruzilhadas da Liberdade: história de escravos e libertos na Bahia (1870-1910), pela editora da UNICAMP, numa entrevista dada à Revista de História, em 2009. Atualmente ele estende sua pesquisa sobre ex-escravos e seus descendentes, estudando essas famílias até 1930. "Havia uma grande expectativa em relação ao fim do cativeiro e não apenas o fim da escravidão que estava na pauta. Escravos e libertos esperavam que a abolição tivesse como desfecho o acesso à terra, à escola ou como se dizia na época à `instrução pública`, à liberdade de movimento e maior inserção como cidadãos. Foram estas expectativas que movimentaram os populares contra o cativeiro e esquentaram as comemorações do 13 de maio. Interessante observar que passada a festa, as autoridades buscaram esvaziar o 13 de maio de sua feição reivindicatória, transformando-o apenas numa data solene e oficial. Nesse quesito, até agora as autoridades republicanas estão vencendo o jogo, pois os 120 anos da abolição passaram praticamente despercebidos", conclui Walter.


Assinatura da Lei Áurea no Paço Imperial. O povo testemunha do lado de fora um dos principais acontecimentos do século XIX, que foi a extinção da famigerada escravidão

Ausência do estado e reivindicação atual

Para esses dois autores, não só o 13 de Maio ficou desvirtuado do seu verdadeiro sentido, como, e principalmente, também a ausência do Estado no processo emancipacionista da abolição suplantou qualquer possibilidade de inserção do ex-escravo na sociedade, como cidadão de fato e de direito, relegando-o, e também seus descendentes, a uma condição de subordinação. A resposta de João José Reis - professor da UFBA e um dos especialistas sobre escravidão e religiosidade africana e afro-brasileira - quando questionado sobre que tipo de reparação o Estado deveria ter feito logo após a Lei Áurea, é taxativa e lacônica. "Educação e reforma agrária". Segundo ele, essa ausência, não só colocou o negro e o mestiço numa situação de subordinação, como arrefeceu qualquer reivindicação de inseri-los com cidadãos na sociedade, repercutindo até hoje, como mostra, por exemplo, as questões da cota. "A polêmica em relação às cotas é para manutenção de privilégio: quem tem não quer abrir mão, porque os argumentos dos anticotas são todos furados, absolutamente todos. As estatísticas da desigualdade racial são eloquentes e aberrantes. Facilitar o acesso do jovem negro à universidade ajudará a corrigir um pouco disso. Além disso, os anticotas fingem desconhecer que elas, em muitas universidades, como a UFBA, não contemplam o negro de classe média (aqueles que cursaram o ensino médio em escolas privadas) e contemplam o branco pobre (aqueles que cursaram o ensino médio em escolas públicas)", responde.




13 de Maio repensado

"Acho que o 13 de maio de 1888 tem sido revisto nos últimos anos. Durante muito tempo a data foi posta de lado tanto pelo Estado republicano quanto pelo movimento negro. Um, legava ao esquecimento o forte tom de benevolência monarquista que prevaleceu na memória nacional sobre a abolição. Já a militância não via sentido em celebrar algo que não trouxe grandes ganhos para a população negra. Mais recentemente, estas posições estão sendo repensadas, em parte graças a descobertas dos pesquisadores que informam sobre o quanto a população negra foi protagonista no desmantelamento da escravidão no Brasil. Esta mudança de perspectiva tem esvaziado a velha compreensão da abolição como uma dádiva da Princesa Isabel. Ao mesmo tempo a ação dos libertos e negros livres contra a repressão, controle e condição de subalternidade depois do treze de maio, incluem a data no calendário de lutas da sociedade brasileira. Nesse sentido, o treze de maio é tanto um momento de celebração quanto de esforço da nossa disposição para construir um país mais igual", compreende Wlamyra R. de Albuquerque.

Nenhum comentário: