terça-feira, 18 de maio de 2010

Bem-vindos à Serra da Barriga


Em Alagoas, na pequena e aconchegante União dos Palmares, fica a extensa faixa de terra que no passado abrigou o maior foco de resistência escrava do Brasil, onde negros, índios e brancos surgiam de vários pontos para alcançar o refúgio seguro que se tornou famoso: o Quilombo dos Palmares.

por André Rezende | foto Rafael Cusato
Vista da Serra da Barriga no ponto mais alto do Parque Memorial Quilombo dos Palmares, a 580 metros de altitude

Em comum, os ideais de liberdade, o fim da escravidão, o direito de exercer suas crenças e cultivar suas raízes. Explorar a Serra da Barriga - tombada como Patrimônio Histórico, Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, em 1986 - e o Parque Memorial Zumbi dos Palmares, é mergulhar em um lugar onde o negro teve voz, teve vez e, por que não dizer, foi livre em suas expressões culturais e ideias, mesmo em tempos de severa escravidão

Minhas impressões sobre a Serra da Barriga começaram a mudar logo no início da área tombada, demarcada por uma espécie de portal onde os visitantes são recebidos com um Oku Abo (Bem-Vindos) e, ao retornarem, Olorum Kolofé Axé (Deus te abençoe e te dê Força)! A partir dali, as referências e dialetos africanos presentes em todo o espaço reforçariam em mim a ideia de que não basta conhecer a fundo determinado assunto e seus significados, com informações adquiridas em livros didáticos ou contadas por alguém. No caso da Serra da Barriga, especificamente, é preciso estar lá, sentir as vibrações e a energia do local para entender, de fato, toda a importância histórica que o cerca.
Durante a subida - de aproximadamente seis quilômetros a contar do portal - fomos acompanhados pelos agentes florestais Roberto Ferreira e Josames Teles. Começava ali a nossa aula prática sobre as belezas e os mistérios da Serra da Barriga. Roberto, que trabalha na região há 10 anos, nos conta que na serra ainda vivem algumas famílias, todas, segundo ele, em plena harmonia em relação à preservação ambiental que o local exige. "Foi feito um grande trabalho de conscientização junto a esses moradores. Hoje, qualquer coisa que é tirada da mata para, por exemplo, arrumar suas casas, é feito com a nossa permissão e supervisão". As moradias antigas, feitas de barro, estão, aos poucos, sendo substituídas por outras de alvenaria, mas sem perder o estilo simples e "caboclo" que as caracterizam. Tais mudanças são feitas para evitar a aparição do barbeiro e, consequentemente, o perigo da doença de chagas, muito comum em regiões quilombolas.
No caminho, a cumplicidade com a natureza anima os visitantes. A paisagem, extremamente verde, tendo ao redor o Rio Mandaú, é repleta de catolé, babaçu, nicuri, além de mangueiras, goiabeiras, laranjeiras, jaqueiras, bananeiras e várias nascentes. Ar puro, vista limpa! Um prato cheio para um ser "urbano" como eu.

Em Alagoas, na pequena e aconchegante União dos Palmares, fica a extensa faixa de terra que no passado abrigou o maior foco de resistência escrava do Brasil, onde negros, índios e brancos surgiam de vários pontos para alcançar o refúgio seguro que se tornou famoso: o Quilombo dos Palmares.

Portal localizado no início da área tombada da Serra da Barriga. Saudações aos visitantes com referências africanas

Cercado de histórias

Enfim, chegamos ao topo (560 metros de altitude) e lá encontramos o Parque Memorial Quilombo dos Pa lmares, que nos remete ao centro da resistência escrava dos vários mocambos que existiram na Serra da Barriga. Na entrada da "sede", a réplica de uma atalaia - torre bastante alta usada pelos escravos para observar a serra e perceber a possível movimentação de invasores.
Impossível não escalá-la! Do alto, com uma visão privilegiada de toda a região - mesmo de uma altura bem inferior das verdadeiras atalaias erguidas pelos escravos - percebo como o Quilombo dos Palmares resistiu tantos anos às investidas daqueles que tentaram invadir e destruir a "República Negra", como ficou conhecido, afinal, estima-se que 20 mil pessoas - 5000 mil somente na sede - entre escravos fugidos, índios e brancos sedentos por liberdade habitaram o local. Uma nação extremamente organizada, como reconheceu a coroa portuguesa em 1768.

E é na área cercada no topo da Serra que o visitante sente, com mais força, toda a energia que permeia a história do Quilombo dos Palmares - fundado por uma mulher, a princesa angolana Aqualtune (mãe de Ganga Zumba) que, grávida, fugiu de um engenho em Porto Calvo e desbravou a região. Ali, as representações da época dão a medida exata de toda a organização criada pelos negros. José Carlos dos Santos, de 23 anos, é um dos 10 guias da Secretaria de Turismo de União dos Palmares encarregados de contar a rica história do quilombo aos turistas. Morador da Serra, ele caminha pela área do parque explicando as diversas representações ali construídas e conta com o auxilio de um sistema de som que, em quatro idiomas (português, inglês, espanhol e italiano) complementam suas lições e criam uma atmosfera difícil de descrever. As gravações, tendo ao fundo ritmos africanos e sons de tambores, foram feitas por negros de prestígio como Leci Brandão, Tony Tornado, Djavan, Carlinhos Brown, entre outros. "Os escravos chegavam até aqui tendo as margens do rio Mandaú como referência. Outros se arriscavam pela mata. Muitos morreram antes de chegar porque enfrentavam as dificuldades naturais da mata e animais selvagens. Os que conseguiam chegar, logo trocavam seus nomes por uma identidade quilombola", explica José.

Na área do parque, por motivos óbvios, é proibida toda e qualquer referência à escravidão. Afinal, o local era símbolo de liberdade, de conquista, do culto aberto aos orixás, lugar onde as expressões culturais de vários povos africanos eram respeitadas e praticadas sem medo. Durante a visita, temos o conhecimento pleno das várias atividades exercidas na época, desde as reuniões dos chefes para planejar estratégias de defesa e ataque, passando pelas rezas dirigidas aos deuses em agradecimento ou para pedir proteção, até o processo na Casa de Farinha, onde a mandioca era transformada, entre outras coisas, em tapioca e biju.

Investimento de peso

Estrada que leva ao Parque Memorial Quilombo dos Palmares. Grandes investimentos estão sendo feitos para melhorar o acesso ao local, entre eles, o calçamento total da estrada. Cerca de R$ 500 mil foram destinados para esta finalidade, segundo o prefeito de União dos Palmares, Areskis Freitas. Durante a subida até o parque, o turista pode contemplar toda a natureza do local, repleta de jaqueiras, goiabeiras, bananeiras, muito verde e, claro, as palmeiras que dão nome ao lugar

Parque memorial quilombo dos palmares

Sob responsabilidade da Fundação Cultural Palmares - vinculada ao Ministério da Cultura - foi inaugurado em 2007 e oferece ao turista, ao longo dos seus 11 mil metros quadrados, uma representação do que foi o Quilombo dos Palmares e as atividades exercidas pelos negros dentro da extrema organização social que caracterizou o local. O Quilombo dos Palmares resistiu por quase 100 anos (1597 a 1695) às invasões de portugueses e holandeses e foi palco de sangrentas batalhas em prol da liberdade. Entre as atrações do parque estão dois mirantes que visão privilegiada da Serra da Barriga, Terreiro das Ervas, ocas indígenas, Casa de Apoio aos Religiosos, restaurante e completa informação sobre história passada aos turistas através de guias muito bem treinados

Atalaia

Nas atalaias (mirantes observatórios), os escravos vigiavam a movimentação em torno do Quilombo dos Palmares. As representações - mesmo sendo mais baixas que as originais - proporcionam uma visão privilegiada de toda a Serra da Barriga. Impossível não subir para entender a longa resistência do local contra as invasões portuguesas e holandesas

Casa de barro que resiste ao tempo. Na área tombada, existem 13 famílias e, entre os moradores, alguns trabalham no Parque ou Serra da Barriga, ajudando na preservação. Abaixo, Benonio Ferreira, o popular "Louro", morador do local há 16 anos

O sentido da vida

Um dos pontos mais emocionantes do passeio é a descida até a Lagoa dos Negros. Chegando lá... O lugar é mágico, sagrado! Entre sons de pássaros e a tranquilidade natural da lagoa, é impossível não se sentar, contemplar a natureza e refletir sobre tudo o que aconteceu por ali. Não à toa, a Lagoa dos Negros representa a purificação da vida, onde os quilombolas, através da energia das águas e das árvores, repousavam e saciavam a sede, afiavam suas armas e ferramentas (em uma pedra ainda é possível ver as marcas) e alimentavam suas almas com a presença do supremo. O Irôco (gameleira branca) é a essência do local. Trazida pelos africanos para a prática religiosa, "a árvore existe desde o princípio dos tempos, e a tudo assistiu, a tudo resistiu e a tudo resistirá", como explica a placa no local. Muito antes de todo esse "movimento verde" pela preservação da natureza que tomou conta do mundo atual, os negros africanos, os guerreiros quilombolas, Aqualtune, Ganga Zumba, Zumbi e vários outros que passaram pelo Quilombo dos Palmares (Minha Pequena Angola) já tinham esse vínculo e preocupação com o que chamavam de essência da criação.


Lagoa dos negros

Um dos momentos mais emocionantes para quem visita o Quilombo dos Palmares. Da lagoa, os negros retiravam barro para fazer panelas e outros utensílios. O lugar, repleto de misticismo, onde centenas de vidas foram sacrificadas durantes as batalhas contra os invasores, conserva uma energia difícil de explicar.

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