sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Carta Aberta

Abdias Nascimento (Salvador, Julho de 2006)


Senhores chefes e ministros de Estado, senhores Prêmios Nobel, senhores participantes desta II Conferência dos Intelectuais Africanos e da Diáspora, saudações. Em nome dos ancestrais e em favor dos não-nascidos, nós nos reunimos hoje.

Ao celebrar a realização deste importante evento, dirijo-me à Vossas Excelências, na qualidade de um cidadão da África e do Brasil.

Minha voz é a dos sem-voz e a dos sem-nome que não se encontram aqui conosco, mas se fazem presentes pela urgência das necessidades que os afligem.

Consigno a todos eles uma homenagem na pessoa do poeta, estadista e pensador pan-africano Aimé Césaire, agraciado pela Unesco com o Prêmio Toussaint Louverture em 2004.

Hoje é um momento histórico porque, pela primeira vez, realiza-se fora do continente um encontro oficial entre os países africanos e os da Diáspora. Como anfitrião do evento, o Brasil sinaliza seu novo empenho em identificar-se como parte do mundo africano.

Os Estados participantes assinalam seu compromisso com o princípio da unidade entre os afrodescendentes, articulado por mestres como Kwame Nkurmah, W.E.Du Bois, George Padmore, Marcus Garvey, Patrice Lumumba, Walter Rodney e tantos outros.

Sou testemunha de um outro fato histórico e alerto para ele: a idéia do pan-africanismo operou algumas das transformações mais importantes da modernidade, mas foi desvirtuada quando Estados e governos quiseram manipulá-la para servir a interesses estranhos a seus propósitos libertários originais.

Ao debruçar-nos sobre o tema "A Diáspora e o Renascimento Africano", pouco significam as nossas ponderações se não formos capazes de ouvir as vozes dos nossos povos que vivem no mundo globalizado uma escravidão psicológica e existencial continuada.

Os Estados africanos e os da Diáspora têm uma responsabilidade histórica diante de seus povos. Não se pode conceber um Renascimento Africano com nossos governos garroteados às estruturas, às exigências, e às condições econômicas e políticas impostas pelo processo de globalização que os mantém à margem do desenvolvimento econômico e que constitui, na sua essência, uma espécie de continuidade de facto do jugo colonial.

Diante disso, continua válido o preceito articulado pelo ministro do presidente João Goulart e colega de San Thiago Dantas, embaixador Araújo Castro, quando assinalava, nos anos de 1960, o conjunto dos três D - Descolonização, Desarmamento e Desenvolvimento - como prioridade para o mundo contemporâneo.

Valem ainda os ideais dos Países Não-Alinhados e do Diálogo Sul-Sul, liderado pelo saudoso Mwalimu Julius Nyerere, entre eles os da transferência de tecnologias e da transfomação da dívida externa em recursos para o melhoramento das condições de vida de nossos povos. Hoje, há uma série de questões específicas, como a das patentes, no contexto dessas ponderações.

Para os países e os povos do mundo africano, há uma dimensão específica gerada pela história do tráfico de africanos escravizados, definido como crime contra a humanidade pela comunidade internacional reunida em Durban em 2001.

Este reconhecimento estabelece o princípio da reparação aos povos que foram alvos de um sistema escravista inédito no mundo e que operou o saque e o despovoamento da África, deserdou seus descendentes escravizados e interrompeu o processo de desenvolvimento que seus povos protagonizavam.

Os resultados desse legado e do colonialismo estão nas condições de fome, miséria, guerras, epidemias e abandono de populações cujo deslocamento compulsório, em virtude desse legado histórico, gera uma situação insustentável.

Como falar em Renascimento Africano sem ouvir o apelo dessas populações? Para isso, conclamo os intelectuais e os representantes dos Estados aqui presentes a se debruçarem sobre o tema da reparação definida de forma ampla e focalizando o seu aspecto prático.

Levar a sério este compromisso significa nos organizarmos e investirmos recursos. Precisamos de instrumentos de trabalho. Trago aqui duas modestas sugestões: a criação da Universidade Pan-Africana e a criação do Museu da Diáspora Africana no Brasil. A primeira daria continuidade ao legado de Cheikh Anta Diop, fundador da pesquisa independente da África, desenvolvendo um pensamento voltado para o tema da reparação. O segundo se dedicaria à missão de reverter a escravidão psicológica que assola nossa gente.

Encerro sublinhando a necessidade de transformar todas as nossas deliberações em medidas concretas capazes de posibilitar aos povos do Continente Africano e da Diáspora desempenharem um papel ativo na construção de um novo modelo de cooperação. Agradecemos aos ancestrais a oportunidade de nos reunirmos em torno desse nobre objetivo.

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